1.31.2013

O risco de ser feliz... aceitas?

Estivera sentado, toda a manhã, no seu gabinete. Os olhos postos em sítio nenhum. O prazo da contestação, no processo dos aviários, a terminar hoje, e nenhuma pachorra para lhe pegar. Inalava o fumo do sétimo cigarro e devolvia-o, em anéis, à atmosfera. Desligara os telefones. Não lhe apetecia aturar ninguém. De forma incompreensível, não dominava os pensamentos que sempre afogava no trabalho.
Teria sido a canção que, cedo, ouvira a caminho do escritório? "I could stay awake just to hear you breathing...", ainda a ressoar.
Teria sido a frieza com que a mulher o olhara quando, na noite anterior, lhe dissera que tencionava enviar o curriculum vitae para uns quantos escritórios de advogados de maior dimensão?
"- Não te chega o que tens?!", questionara, mastigando, frenética, o guisado que jantavam.
Ela jamais perceberia que não deveria falar com a boca cheia, mas isso também já não o incomodava particularmente. Todo o mal fosse esse.
Talvez, na origem da sua melancolia, estivesse uma conjugação de factores que não lhe apetecia identificar. Sempre gerira a sua vida com grande pragmatismo, atafulhando numa gaveta interior tudo o que o magoava ou, potencialmente, poderia fazê-lo. Tudo o que lhe cortava a respiração. Era mais seguro assim. A jurisprudência das cautelas, era a sua.
Hoje, o espírito teimava em apoquentá-lo, em revolver a gaveta, mas ele queria fechá-la, se possível, para sempre. Esforçava-se tanto por cumprir os cânones da vida de um homem honrado. Era um profissional sério e cumpridor, um dos poucos que, por ali, pleiteavam nas casas da justiça; bom filho, pai atento e dedicado; um marido... Bem, era um marido que acordava todas as manhãs ao lado da sua mulher e que se comprometera, perante Deus, o pároco da vila e cem convidados, a ser-lhe sempre fiel.
"Eu até gosto dela", pensava amiúde.
A vida pregara-lhe uma partida, a testar a sua abnegação. Ou dera-lhe uma oportunidade que desperdiçara?
Aquela mulher aparecera nos seus dias e, com o olhar, dissera-lhe que o amava. Que, juntos, perderiam o fôlego, o chão e todos os medos. E ele soube que era verdade.
Desejou essa vida. Depois, tomou-se de pânico. De perder as certezas miudinhas. De sofrer.
E mentiu. Mentiu muito a si mesmo.
Com um estremecimento, voltou a si. Agradecendo à ciência, encharcou-se em benzodiazepinas.
Uma lágrima teimosa, logo exterminada pelo dever.
O prazo da contestação, no processo dos aviários, a terminar hoje.
 
(imagem retirada daqui)


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