11.06.2012

Da aproximação do Natal, dos falsos moralismos e da minha falta de paciência

Dou comigo irritada.
Com a situação do país. Com as imposições de quem tudo pode. Com as falências e as portas a fecharem-se. Com as fileiras de desempregados e a fome que já se lê nos olhos de muitos. Com os manifestantes que transformam os protestos em espectáculos de circo. Com o saldo da conta bancária cada vez mais pequenino e as despesas em constante crescendo. Com o medo de não conseguir cumprir as minhas obrigações.
Mais do que irritação, o que sinto é uma enorme apreensão. Também em crescendo. Todos os dias.
A irritação, essa, é mesmo com as pessoas. Em momentos tão difíceis, deveríamos ser especialmente solidários uns com os outros. Mas não. Nem na miséria o somos. Nada a fazer.
Isto vem a propósito da aproximação da quadra natalícia e dos comentários que começam já a proliferar nas redes sociais, que mais não são, afinal, do que a reprodução, porventura acrítica, de um certo tipo de discurso que, por esta altura, todos os anos, impera. E nem está, necessariamente, relacionado com a crise. É apenas mais do mesmo.
É verdade. Lá teremos de suportar ouvir o célebre "Natal é paz e amor, não o consumismo desenfreado", é "tempo da família e de união". E por aí fora. É a converseta mais do que gasta.
Não que o Natal não seja, para mim e para a minha família, pontuado por todas aquelas coisas. Esforçamo-nos para que assim seja. A pergunta que sempre me ocupa a mente, porém, é: não deveriam todos os dias ser de afectos, de solidariedade entre os Homens, de união das famílias?
Como é aborrecido e insensato o discurso do "os portugueses só pensam em consumir", "gastam o que não podem, tal como quando vão de férias" (este aditamento é delicioso!), sendo que, quem o utiliza, se coloca, evidente e invariavelmente, fora desse grupo maldito formado... pelos "portugueses", ora bem..! Quem utiliza esse discurso são pessoas auto intituladas de "cidadãos com princípios e valores", "bons educadores", "bons gestores domésticos"... por contraponto aos tais dos "desgovernados", os "portugueses" que só pensam em fazer do Natal uma quadra dedicada ao consumo. Pessoas sem princípios nem valores, portanto.
Para além da manifesta falta de inteligência que as generalizações sempre revelam, pergunto-me, em primeiro lugar, o que terão estas pessoas que ver com o dinheiro que os outros gastam, no Natal, nas férias, ou noutra ocasião qualquer? A menos que estes o façam a expensas dos "cidadãos com moral", referidos, parece-me que... nada!
Por outro lado, questiono-me se o número de presentes recebidos "per capita", ou o número de decorações natalícias adquiridas será inversamente proporcional ao acervo de princípios e valores de quem os recebe/adquire. Estou certa de que não!
Particularmente, não posso dar-me ao luxo de consumir muito. Nem neste Natal, nem nos que virão, adivinho. Também não pude ir de férias.
Se seria extraordinariamente mais feliz se pudesse comprar mais sapatos, malas, livros, discos, ou brinquedos e vestuário para os filhos? Talvez não fosse. Seria pior pessoa se pudesse fazê-lo? Não me parece.
Se acho que cada um faz ao seu dinheiro o que bem entende? Acho.
Se acho que quem pode fazê-lo, deve gastar o que ganha com o esforço do seu trabalho, também, em coisas que lhe dão prazer? Acho.
Se acho que as pessoas que ainda podem mimar-se, e aos seus, com alguns bens materiais, são pessoas sem valores e sem princípios, maus educadores e/ou maus gestores domésticos? De todo!
A vida não devia ser apenas cumprimento de deveres e de obrigações contraídas. E é-o cada vez mais, porque estamos depauperados, e, à generalidade de nós, já pouco ou nada sobra para uma ou outra distração.
Uma coisa tenho como segura: os falsos moralistas que utilizam o referido discurso não são, não podem ser, as "pessoas com valores e princípios" que se dizem. Pessoas com valores e princípios não estão sempre prontas para julgar, gratuitamente, o próximo.

(foto via Moi Decor)

4 comentários:

  1. Concordo inteiramente com este texto. Como escreves, a vida tem de ser mais do que cumprir obrigações e deveres. Quem disser o contrário, não sabe o que diz. E é importante que este discurso passe. Gostar de coisas bonitas e de as ter não é ser materialista. É ser esteta. Gostar de oferecer é ser generoso. E não vamos pensar que todos os que são estetas e gostam de oferecer são pessoas que estão a tentar apagar a sua culpa. Porque esse raciocínio é mais uma falácia dos falsos moralistas que por aí andam.
    Parabéns pelo texto que põe o dedo na ferida, com a elegância habitual.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. subscrevo na íntegra. nunca suportei moralismos bacocos ou falsas modéstias.

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  4. Texto maravilhoso, Ana.
    Os portugueses pautam a sua vida em função da vida dos outros e em comparação com estes. Sempre com falsos moralismos, mesquinhez de alma e invejas gratuitas.
    A falta de verdade, de honestidade (pessoal e social) e de valores foram os grandes males que nos conduziram à situação atual.
    Cada um é senhor da sua vida, mas também é responsável pelas opções que faz.

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