9.28.2012

Mal nos conhecemos / Inaugurámos a palavra «amigo»!

"Mal nos conhecemos / Inaugurámos a palavra «amigo»!".
Assim se inicia um dos mais citados poemas de Alexandre O'Neill.  Tantas vezes citado, pergunto-me, porém, se, com o passar do tempo, isso o não terá esvaziado de conteúdo. Se o poema será entendido - melhor dizendo, sentido - no seu significado intrínseco, a cada vez que alguém o transcreve para um qualquer suporte.
Não que eu seja céptica relativamente à amizade - não escreverei "à verdadeira amizade", justamente porque o contrário envolve uma contradição nos próprios termos.
Na realidade, no que toca à amizade, sou uma crente, uma "beata fervorosa", acredito no poder da mesma e na influência que pode ter na vida de quem por ela se deixa tocar. Mas, sobre essa influência, discorrerei noutro espaço.
Cícero escreveu que, "dos amores humanos, o menos egoísta, o mais puro e desinteressado é o amor da amizade". Assentindo, acrescentarei que, sem o amor da amizade, o amor romântico é pobre e votado à insubsistência.
Ao longo da minha jornada existencial, muitas vezes me tenho questionado sobre o significado da amizade e sobre o papel que tenho na vida daqueles a quem chamo de "amigos", e vice-versa.
Há alguns dias, o M. dizia-me  "uma pessoa incapaz de fundar qualquer relação inócua". A mais pura das verdades. Relações que nada acrescentam são, para mim, meras interacções, normalmente impostas por circunstâncias pessoais ou profissionais. Não constituem, pois, qualquer alimento para a alma.
Nunca fiz amizades com facilidade. Talvez por ser uma pessoa tímida e reservada. Mantive sempre um núcleo contido de amigos, o qual, no correr da vida e com naturalidade, nalguma parte, se alterou. Tenho amizades que têm quase a minha idade, outras que nasceram recentemente e que ainda dão, embora de forma assertiva, os seus "primeiros passos". Todas muito boas.
Penso poder dizer que me entrego, de coração inteiro, aos meus amigos. Sou uma adepta do incondicional, portanto.
Sucede que, quando nos entregamos, com esta intensidade, àqueles de quem gostamos, é seguro que, mais cedo ou mais tarde, sofreremos graves desilusões. Julgo, até, que aqueles que não se entregam - que nunca se entregam para além do que pode considerar-se a fronteira da sua zona de conforto -, fazem-no conscientemente, como forma de auto-preservação.
Porque dói. Dói intensamente sentir que demos de nós mesmos, que teríamos dado mais se as circunstâncias o tivessem exigido ou proporcionado, e que isso não foi devidamente valorizado, que, pura e simplesmente, foi deitado fora, como se de algo de trivial se tratasse.
Creio que faz parte dos processos internos do ser humano, perante a desilusão, a incompreensão e o sentimento de injustiça que aquela provoca, passar por uma fase de rebelião, na qual nos insurgimos contra nós mesmos, contra a nossa forma de ser e de estar na vida e na relação com o outro.
Humana que sou, já vivi, e de forma vincada, fases de rebelião, nas quais expressei intensa raiva por me entregar demasiado, por pensar nos outros em detrimento de mim mesma, por estar sempre "lá" e por, quando precisei, o inverso não haver - pasme-se! - sucedido.
Percebi, nesses momentos, que não é o facto de não me dar aos outros na perspectiva de deles receber, que evita o sofrimento de realizar que, afinal, a importância que tínhamos, uns para os outros, não merecia equiparação.
E compreendi, também, que, como, recorrentemente, afirma um grande e sábio amigo meu, existem "erros de casting" que não conseguimos evitar, ainda que tenhamos a "mania" de que lemos as pessoas com particular fidedignidade. E que, por vezes, o que temos de melhor para oferecer não corresponde ao que o outro reclama para a sua vida e para a sua felicidade. Ou, pelo menos, àquilo que a sua generosidade e/ou inteligência emocional suporta.
Em profunda fase de rebelião, recebi, há dias, uma mensagem, na qual, entre o mais, podia ler-se, "- Tu és uma pessoa muito especial!". Em abono da verdade, terei de dizer que, momentaneamente, tive a sensação de ter levado um enorme murro no estômago. Não foi a primeira vez que a frase, com essa mesma literalidade, me fora dirigida e isso gerou-me um enorme desconforto, essencialmente por me fazer recordar que, algumas vezes, a mensagem não terá passado de um conjunto ordenado de palavras desprovidas de significação especial para o seu autor.
Depois... Bem, depois esbocei um sorriso, e fi-lo com gratidão, por saber que, pelo menos desta vez, estas palavras vieram do coração de quem as proferiu (muito especial, devo dizer!). E, fazendo o balanço, compreendi que a entrega àqueles que amo continua a ser o caminho. O meu, pelo menos.


9.20.2012

A Estante das Grandes Oportunidades Perdidas

Protagonizava, num destes dias, um breve mas sempre épico episódio de autocomiseração, procurando fazer uma antevisão - fantasiosa, ou não, desconheço!, mas acredito piamente que o seja - do que sucederia se, um dia, com a grata generosidade que me caracteriza, oferecesse o meu livro (porque, nalgum lugar, no tempo e na vida, eu vou escrevê-lo!) a uma determinada pessoa, cuja identidade, naturalmente, irreleva por completo.
Estando empenhada neste meu infrutuoso exercício do "que triste sou por não poder contar-me entre os protagonistas da sua vida", recebo uma sempre bem-vinda bofetada moral da minha ilustre interlocutora, a C..
A C. é uma mulher extremamente inteligente, espirituosa e determinada, pouco dada a visões românticas de filmes de quarta categoria, como ela diz. Teima em "chamar-me à Terra" quando eu entro em espirais de autocrítica imerecida e de sofrimento associado a acontecimentos relativamente aos quais eu não tenho o chamado "domínio do facto".
Afirmava eu que, naquele cenário, o livro seria, apenas, deitado fora. O livro, como o resto, aliás, nada de novo.
A minha interlocutora disse, ipsis verbis: "- Pois eu acho que [...] o arrumava na estante das grandes oportunidades perdidas (se ainda tiver espaço)".
E assim ficámos. Nada mais sobre isso se disse. Nada mais havia, afinal, a dizer.
Se assim é, ou não, desconheço. Nunca saberei. E até pode ser que o livro nunca "saia". Ou que amanhã não estejamos cá para o ler, para o deitar fora, ou para o arrumar em qualquer estante, até na das grandes oportunidades perdidas.
A profundidade das palavras da C. (não sabe dizê-las de outra forma, aquela rapariga!) deixou-me, porém, a pensar.
Não que encarnei ou encarno qualquer oportunidade perdida para quem quer que seja. De todo.
Mas, sim, em que todos nós teremos a nossa estante das oportunidades perdidas. Grandes, médias ou pequenas. Oportunidades de mudança, de crescimento. De preenchimento interior.
Eu tenho a minha, certamente já com algum recheio. Vocês terão a vossa.
Porventura, nunca chegamos a apercebermo-nos, verdadeiramente, do quão preenchida ela vai ficando com o passar dos dias. Ou talvez apenas tomemos consciência disso no momento em que lá tentamos arquivar mais uma oportunidade perdida e verificamos que, ali, já não existe mais espaço.
Nesse dia, porventura, colapsamos por dentro. Ainda que continuemos a fingir muito.
Decidi, entretanto, que não quero perscrutar, nessa minha estante, o que lá jaz. Talvez valesse a pena procurar intuir se existe alguma coisa que ainda de lá pode ser retirada com vida.
Decidi, especialmente, que não quero e que não vou alimentar esta estante cemitério.
Noutra conversa e noutro contexto, dizia-me, ainda, a C., reconduzindo-me, porém, ao mesmo lugar: "- Gosto muito desta ideia: vamos na vida e há um corredor cheio de portas. Se não as abrires, não vais saber o que lá está. Se abrires... haverá dificuldades, mas também coisas boas".
Um brinde, pois, ao abrir de portas.


 

9.08.2012

Da perspectiva

Perspectiva, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, é a "arte de figurar no desenho as distâncias diversas que separam entre si os objectos".
Colocarmo-nos, a nós e aos outros, em perspectiva é, pois, uma arte. Uma arte do espírito. A cultivar, com dedicação e preserverança.
E porquê?
Porque, na verdade, se não nos colocarmos em perspectiva, jamais conseguiremos apreender qual é o nosso real valor, nas diversas dimensões do ser.
E, não conseguindo fazê-lo, pode suceder uma de duas coisas: ou nos temos por algo que não somos mas que gostaríamos de ser (e, nesse caso, não protagonizaremos mais do que uma farsa mal encenada que, porventura mais cedo do que mais tarde, será alvo de inevitável escrutínio e nos conduzirá ao encerramento das nossas próprias bilheteiras por falta de público - pelo menos, daquele que emprestaria algum relevo à humilde dramatização que é a vida), ou passamos pelos dias em atitude de infrutuosa subestimação, condenando a nossa existência a um sofrimento absolutamente inútil, estéril e, acima de tudo, imerecido.
É costume afirmar-se que "vale mais tarde do que nunca", pelo que, qualquer momento na nossa vida é adequado ao desenvolvimento da nobre tarefa de nos perspectivarmos.
Porém, fazê-lo exige verdade e exige coragem. Para nos confrontarmos connosco, com os nossos medos, com as nossas fraquezas, com os nossos defeitos e falhas, com a nossa forma de estar perante o mundo - o(s) outro(s)! - e a vida. Nem todos o conseguirão, é certo, mas estou certa de que todos deveríamos tentá-lo. Acima de tudo, para o nosso próprio bem, o que, convenhamos, constituirá um razoável incentivo até aos mais egoístas.
Perspectivarmo-nos pode ser, realmente, libertador.
Na verdade, se conduzirmos a nossa vida pela dita farsa mal encenada, ao perspectivarmo-nos, permitimo-nos entrar em cena, eventualmente, a tempo de despedir o mau encenador e de exigir do actor principal (nós mesmos) que estude bem o papel e que o interprete com um mínimo de decência, mas, se possível... magistralmente. Com verdade. Com amor. Podemos impor-lhe que salve a peça, antes que caia o pano sem que esteja lá quem se coloque de pé para aplaudi-lo. Alguém com relevo, entenda-se. Porque existe sempre um publicozinho que jamais fará uma crítica verdadeira à peça que é a nossa vida, todavia, através dele, jamais viveremos realmente. Jamais ascenderemos a um patamar de respeito profundo e de admiração.
Se, por outro lado, vivermos em atitude de absoluta subestimação, perspectivarmo-nos será, seguramente, o primeiro grande passo para uma existência mais consciente, mais edificante, mais feliz, portanto.
Tipicamente, o ser que se subestima sente que não é suficientemente bom e perfeito, que não fez o que dele era esperado (mesmo que tenha feito muito mais do que se lhe podia exigir e muito mais do que a generalidade das pessoas faria em situação similar), e, quando é distratado ou injustiçado, interioriza que não mereceu que os outros tivessem atitude diversa para consigo. O ser que se subestima, por natureza, não aceita ter feito e sido o melhor que podia, muito menos que os outros podem "apenas" ser pessoas cobardes, mal formadas ou qualquer outra coisa menos do que "perfeitas".
Isto, no mínimo, pode ser avassalador. E é, indismentivelmente, muito injusto.
E é por isso que, colocarmo-nos em perspectiva, desenharmo-nos no cenário e dispormos, nele, também, todos aqueles com quem nos relacionamos, é um exercício vital.
Para percebermos quem somos e o lugar que ocupamos e quem os outros são e o lugar que ocupam. Como somos para os outros e como os outros são para nós.
O que lhes damos, o que temos para lhes dar. O que eles nos dão, o que têm para nos dar. De si mesmos, bem entendido.
Exercício tão essencial como surpreendente. E curativo.