1.02.2013

os vinte e nove anos a teimarem

Um texto absolutamente sublime de Bernardo Tomé, com o qual muito me identifiquei.
 
"e agora que me garantem que o fim do mundo já passou, que nos mantivemos iguais e que os mortos não regressaram, ficou a sensação de um ano ter tido um comprimento maior do que o tempo que demorei a tentar esquecer o que teima em ficar.

nu...nca gostei de previsões. O Nostradamos enganou-se demasiadas vezes para que as ciganas de cheiros miseráveis me pedissem a palma das mãos.

nunca gostei dos esquecimentos escolhidos para o ano novo. fiz sempre o que me apeteceu durante os dias para que o arrependimento pudesse ter lugar à minha porta.

cansam-me os vinte e nove anos que tenho. isso consigo admitir. são vinte e nove anos que não foram tantos como este ano que vai terminar. cansam-me os vinte e nove anos nos livros que ainda tenho para escrever.

fico no entanto comovido com o final de um ano memorável. o ano em que escrevi um livro bonito, com palavras que têm um nome que ecoa eternamente dentro de mim. um livro que me garante o futuro. um livro sem conjugação.

fico comovido.

comovido. da mesma forma que um pai se deixa desmaiar no trabalho de parto.

mas os vinte e nove anos a teimarem. a idade a descobrir que precisamos dos outros. das palavras dos outros. dos olhos dos outros. da ternura dos outros. da candura dos outros. da verdade dos outros.

os vinte e nove anos a conhecerem os amigos de sempre. a escreverem a aguarela, com cores que ninguém consegue imaginar: Luis Paliotes. Ricardo Pinto. Bruno Rodrigues. Filipe Morais. Gonçalo Tomé. Eduardo Duarte.

os vinte e nove anos a descobrirem que a idade não importa. o que é verdadeiramente importante é o tempo e a qualidade de um sorriso. as memórias que ainda não se pensam. a gente maior que qualquer criança: Nelson Azevedo. Luís Santos. Diogo Duque. António S. V. Leal. Joao Barros. Tony Silva. Ricardo Moreira. Carlos Moreira. Tim-Tim. João Oliveira. João Botelho. Ricardo Leite.

os vinte e nove anos a olharem para o final do ano e todos os escritores que ficaram neste tempo que urge, mais ousado que nunca, nos maravilhosos: Valter Hugo Mãe. José Luis Peixoto. Vergilio Ferreira. Eugénio de Andrade. António Lobo Antunes.

os vinte e nove anos cada vez mais velhos a serem corrigidos pela literatura: Henry Miller. Jorge Luis Borges. Luis Sepulveda. Coetzee. Anais Nin. Celine.

os livros que se leram em dois mil e doze. que continuarão a ser lidos em dois mil e trinta e três. os livros a servirem como roupa. a criarem um silêncio oportuno na biblioteca que floresce na casa que vou construindo.

tudo isto é um final de ano. apenas mais um dia que se fará noite, até descambar para uma nova manhã. tão diferente de outras. tão diferente.

tão diferente que será a mesma de ontem.

Bom Ano a todos os que estão por aqui. a todos os que morrem. a todos os que morrem. a todos aqueles que sobreviveram ao fim do mundo que promete acontecer sempre que um livro se termina. a todos. a todos.

Bom Ano."
 
(imagem que acompanha o texto)

2 comentários:

  1. Fantástico! Os portugueses identificados na literatura são os meus preferidos!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Os meus também. Essa foi uma das razões pelas quais tanto me identifiquei com este texto. Depois de a "Mãe Natal" me ter brindado com os livros do JLP ainda em falta, hoje saí para fazer a troca de um outro livro (repetido) e regressei a casa com... seis! Afonso Cruz, Valter Hugo Mãe, José Eduardo Agualusa e Pedro Sena-Lino... Êxtase! E só não veio o do Bernardo Tomé porque não estava disponível, nem na Bertrand, nem na Fnac!

      Eliminar