1.10.2013

Aquilo de que eu gosto é de ler e de escrever

- Atira-te à tabuada, rapariga!
Não serei capaz de contar as vezes que, menina, ouvi esta frase da boca do meu pai. Sisudo. De olhos verdes, frios e penetrantes, dura e longamente pousados em mim. A boca num esgar.
Recordo-me dos dias solarengos, durante as férias do Verão, da brisa do final da tarde a convidar-me para o jogo da apanhada e outras brincadeiras da idade. E da preocupação. A preocupação constante.
- Se quando chegares a casa não souberes a tabuada na ponta da língua, conversamos.
Nunca conversámos. Sobre coisa nenhuma. De voz tensa e mãos trémulas, debitava a tabuada. Secretamente, implorava-me, "não te enganes, não te enganes!".
Quando a tabuada estava sabida e os programas escolares me levaram para outras aprendizagens, aquela foi substituída pelas equações do primeiro e segundo graus. Depois, pelas equações trigonométricas, pelas tangentes e secantes.
- Mas eu gosto é de ler e de escrever, pai!
- Deixa-te disso, rapariga, pega-te à matemática ou nunca vais ser ninguém na vida!
A sensação de murro no estômago. A mente a divagar por cenários em que eu impunha o meu querer, o meu ser. A imaginação a levar-me para um quadro pintado a cores brilhantes, em que eu era realmente eu, não um ser mal talhado pelo gume da faca alheia. Depois, o regresso à realidade, o esmorecer do sorriso que aqueles pensamentos afloravam em mim.
- Tira um curso de gestão, rapariga, que os fulanos das letras não ganham nem para comer!
- Mas eu gosto é de ler e de escrever, pai!
- Deixa-te disso, rapariga, pega-te à matemática ou nunca vais ser ninguém na vida!
Num silêncio ordeiro mas ensurdecedor, peguei-me à matemática. Doze anos a fingir que éramos almas gémeas, que nos sentíamos, que nos compreendíamos mutuamente. A entrada na faculdade de gestão saudada, tão-só, com uma pancadinha nas costas.
Depois, um dia de raiva, um dia de "basta"!
- E agora o que vais fazer, rapariga?! Eu sempre soube que serias uma falhada!
- Agora?! Agora vou ser ********. Já que não me deixas ser quem sou...
- Uma falhada, claro está, mas, pelo menos, pode ser que ganhes para comer!
Mais anos passaram por mim, cinco deles a estudar direito. Aos trinta e seis, sinto, nem o pai, nem qualquer máscara social conseguirão conter-me as palavras na boca. Aquilo de que eu gosto é de ler e de escrever.
 
 


1 comentário:

  1. Gostei muito deste texto. Como é habitual neste blogue, está bem escrito, com sensibilidade e emoção, sem cair na lamechice. Parabéns. Já tinha saudades desta escrita.

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