3.06.2013

"- A menina dança?"

- A menina dança?
Toda a vida receara que se lhe rasgasse o peito de dor.
Crescera num palco de violência nos gestos e nas palavras. Agachada, de cabeça entre os joelhos, Sílvia prometera-se infinitas vezes que jamais seria como a mãe. Jamais faria as suas escolhas, jamais se deixaria iludir por declarações de amor que sobrevinham aos murros da noite anterior.
Na verdade, sempre pensara que o amor era aquilo. Socos num dia, palavras bonitas e pedidos de perdão no outro, mais pontapés e vaias no seguinte. Com as lágrimas de sua mãe regara a sua determinação de nunca se entregar a ninguém mais do que a conta.
Fora essa a razão pela qual, quando, aos dezoito anos, o Jorge da livraria lhe pedira uma dança durante um dos bailaricos da paróquia, emudecera e fugira, deixando-o, com o peso da suprema decepção sobre os ombros, sozinho na pista.
Antes desse dia, Sílvia passava, amiúde, frente à montra da livraria, fingindo-se interessada nas novidades literárias. Sempre que via aquele bonito rapaz sentia um estremecimento perturbador. Se os seus olhares calhavam a cruzar-se, as pernas tremiam-lhe, sentia-se quase desfalecer. A partir de certa altura, apercebendo-se da sua assiduidade, Jorge passou a acenar-lhe sorridente, atitude que a deixava num misto de felicidade e de inquietação. Nessas ocasiões, desejava ser-lhe apresentada, conhecer a sua voz e, quem sabe, ser por ele convidada para o baile quinzenal que as beatas menos radicais da aldeia organizavam. Todavia, sempre que se dispunha a interpelá-lo, as palavras secavam-lhe na garganta, não de vergonha, mas de medo. De que ele pudesse vir a amá-la ao jeito de seu pai e de que ela se deixasse aprisionar pelo coração, como sucedera com a sua mãe.
Aos dezanove anos, Sílvia viera para a cidade servir, como tantas raparigas da sua terra e das aldeias vizinhas. Quarenta anos volvidos, podia afirmar que cumprira a sua determinação de manter, no peito, o coração intacto. Ou talvez assim não fosse, já que o sentia apertar-se dolorosamente quando recordava Jorge e a forma como o deixara suspenso nas notas musicais que invadiam o ar naquela noite quente de 1972.
Sabia agora um pouco mais da vida e sentia que talvez o amor fosse uma coisa diferente.
Fez um telefonema, decidiu-se.
No dia seguinte, retornou à aldeia, à livraria, e, entregando a Jorge as duas mãos e o coração, disse: "- Sim, danço".
 
 
(ilustração retirada daqui)

 

 

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