" (...) Chegaram ao ponto onde o muro da casa da Dona Milú se arredondava numa esquina que dava para a descida da fonte, continuaram. A mãe pousou a mala e baixou-se até ficar diante do Ilídio. Era elegante o seu corpo dobrado dentro das roupas. A mãe tinha as sobrabcelhas finas. Acertou o colarinho da camisa do filho. Como se as mãos fossem escovas, passou-as pelo casaco do filho, a limpá-lo de nada. Tirou-lhe a pequena mala e pousou-a num banco de pedra que existia ao lado da fonte. Tirou-lhe o livro que trazia debaixo do braço e pousou-o sobre a mala. Segurando-lhe os ombros, mais uma vez, olhou-o em silêncio. O silêncio passou. A mãe tinha uma voz:
Fica aqui, não saias daqui.
O Ilídio era capaz de entender e obedecer às ordens simples da mãe.
Espera aqui.
Não respondeu. Queria ver o que ia acontecer. Durante a última semana, a mãe séria, sem palavras, o Ilídio não compreendia. Ao seu lado, a água da fonte.
Os olhos da mãe ficaram parados nos do filho até ao instante em que o seu corpo se virou e se afastou, regressando por onde tinha acabado de chegar. O Ilídio estava a pensar em qualquer coisa, talvez nos pássaros que vinham enfiar-se nas folhas de hera que cobriam o topo do muro da Dona Milú, à sua frente, pássaros da primavera. Asas ou folhas. E não se esforçou por ouvir os passos da mãe a afastarem-se até serem apenas um resto de som. Só o instinto. Quando lhe pareceu que já tinha passado muito tempo, sem mexer os pés, com as mãos atrás das costas, inclinou o tronco para a frente para ver a mãe lá ao fundo, lá ao fundo, a afastar-se, era a sua mãe e, depois, ui, a desaparecer, a dobrar a esquina. O Ilídio voltou com o corpo à sua posição. Longe, no adro, os sinos da igreja deram as sete da tarde. Essa hora espalhou-se por toda a vila. Com seis anos, o Ilídio sabia bem que, no adro, o toque dos sinos interrompia as conversas e os pensamentos. (...) Quando inspirava, o Ilídio sentia uma espécie de felicidade. Sentia que alguma coisa ia mudar. Entretanto, ali, o canto distante das cigarras, as palmas das mãos pousadas sobre a cal ainda morna do sol da tarde, a água água água.
O Ilídio tinha fome. Passou um grupo de mulheres com cabazes de roupa suja. Olharam para ele e não disseram nada. Pouco depois, ouvia-se a água a ser atirada ao ar, o eco estridente das suas gargalhadas. Aquilo que diziam era como uivos, queixas ou súplicas e, depois, gargalhadas. Eram barulhentas. A água levava murros. Passou também um homem, trôpego, curvo, de pernas arcadas. Tinha o cabelo velho, puxava uma burra de olhos cansados. Eram dois grandes olhos castanhos. Esse cansaço continha tristeza. O cansaço do Ilídio era diferente. A tarde escurecia e, a essa velocidade, o Ilídio impacientava-se e zangava-se. O homem não se demorou. Já depois de a burra ter bebido, quando ainda estavam a preparar-se para subir, depois de passar um lenço enrodilhado pela cara, perguntou:
De quem é que tu és filho?
O Ilídio disse o nome da mãe.
De quem?
Repetiu o nome da mãe. O homem ficou parado, a fazer contas de cabeça, a tentar perceber e, depois, de repente, compreendeu. Como se Ilídio tivesse deixado de existir, subiu o caminho de terra, seguido pela burra, conformada.
No silêncio do espaço à sua volta, o Ilídio esperava ainda. A tarde desaparecia, as formas já não tinham sombra e, aos poucos, mudavam de cor, transformavam-se elas próprias em sombra. O Ilídio tinha fome e, por isso, pensou em beber água, desconhecia a história da fonte. Mas, por um instante, acreditou que quando a mãe voltasse, havia de perceber que ele tinha saído do lugar e havia de zangar-se. Ele não a temia mas, ali, apeteceu-lhe evitar essa cena, até porque as mulheres já haviam terminado de lavar a roupa, já a tinham torcido, e subiam caladas, carregadas, o cheiro do sabão azul, as chinelas a escorregarem na terra seca.
E não era quase de noite, era mesmo de noite. Existia ainda a memória da tarde, mas já era de noite. O sino não tinha deixado de dar todas as horas. O Ilídio enrolava perguntas para dentro de si. Bebeu água. Com o pescoço apertado, sentia água a escorrer-lhe pelos lados da boca e pelo queixo. Era fresca e enchia-o. Onde estaria a sua mãe? Porque não o vinha buscar? O Ilídio irritava-se com estas perguntas. A mãe costumava ralhar-lhe por muito menos. Quando chegasse, iria castigá-la. (...) Depois desta lembrança, pensava que, se a mãe chegasse, talvez não dissesse nada. Ia só correr para ela e abraçá-la. (...)".
Esta é uma das passagens mais perturbadoras do "Livro", de José Luís Peixoto. Continua até que compreendamos que a mãe de Ilídio não voltou e que este menino, com apenas seis anos de idade, foi resgatado do local onde foi deixado por Josué, o homem que ficara encarregue de lhe dar um tecto para, a partir desse dia, sobreviver orfão.
O "Livro", como toda a obra de José Luís Peixoto, contém as palavras que se entranham, devagar, em nós, na nossa essência, e que desejamos que ali fiquem para sempre, como que gravadas a ferro quente.
Não é um livro de fácil leitura, na medida em que revolve, de modo violento, as nossas emoções. Em certo dia, li cerca de um terço do mesmo. Parei. Não me sentia preparada para tal. Porque é preciso estarmos realmente preparados, em termos emocionais, para ler esta obra maravilhosa. Agora sim. Sinto que posso lê-lo. E vale mesmo a pena. Consumir, uma a uma, as palavras que nos oferece.